Não vi o livro, mas li o filme
Algumas considerações sobre a relação entre cinema e literatura
Mário Jorge Torres
Onde queremos chegar com mais estas incursões pelo cinema do passado, instrumentalizado para falar das formas do presente? À evidência de que, mesmo quando o cinema se socorria da discursividade literária (A Morte Cansada ou Vertigo adaptam textos literários de valor desigual), sempre se construíram nos objectos fílmicos pontos de interesse de uma outra ordem, que punham já em questão o primado da adaptabilidade como hipótese.
Por isso, Monique Carcaud Macaire e Jeanne-Marie Clerc, num artigo reunido nas Actas do Colóquio realizado em Cérisy, em 1998, “Pour une Approche Socio-critique de l’Adaptation Cinématographique: l’Exemple de Mort à Venise” [Monique Carcaud-Macaire et Jeanne-Marie Clerc, “Pour une Approche Sociocritique de l’Adaptation Cinématographique: l’Exemple de Mort à Venise,” André Gaudreault et Thierry Groenstein (eds.), La Transécriture. Pour une Théorie de l’ Adaptation (Québec: Éditions Nota Bene, 1998), pp. 151-176], recusam, liminarmente, os conceitos conjugais de fidelidade ou traição, sublinhando de forma peremptória que não existem equivalências semióticas entre romance e filme.
A criação fílmica deve, portanto, mobilizar no espectador uma competência de leitura, um saber cultural, que lhe são próprios. Por outro lado, toda a adaptação pressupõe uma leitura prévia, sendo uma redistribuição mediatizada pela escrita cinematográfica desse processo de leitura. O exemplo do trabalho de Visconti sobre Mann é de facto produtivo. Começa, desde logo, pela ausência do artigo no título: do original alemão de Thomas Mann, Der Tod in Venedig, passamos a Morte a Venezia (ou Death in Venice), abstractizando e universalizando. Depois, o cineasta esvazia a novela de Mann de elementos realistas essenciais, como datação e localização precisas, e vai até à transformação do protagonista da novela no compositor do filme, interpretando uma possível alusão física e informações de que o escritor se teria livremente inspirado em Gustav Mahler, para construir Von Aschenbach.
O filme vai para além, e para trás, da novela, a fim de desencadear a sua própria estratégia, fazendo da música de Mahler um elemento fulcral da ficção. Ler Morte a Venezia (1971) implica, pois, ler o uso do adagietto da Quinta Sinfonia de Mahler na economia narrativa do filme. Adorno, citado pelas autoras do artigo, via no adagietto e na sua extrema lentidão um pendor hesitante, que suspendia o correr do tempo. Trata-se de um elemento indissociável do filme, que já nada tem a ver com Thomas Mann e com a sua cosmovisão burguesa. Se Visconti aceita a ideia de Mediterrâneo de Mann, instaura uma série de conceitos abstractos, que lhe vêm do uso da música (como já acontecera com a instrumentalização de Bruckner em Senso), edificando o filme à base de leit-motive próprios. Por outro lado, Visconti acrescenta à novela Der Tod in Venedig, o conhecimento de um texto muito mais tardio de Mann, Doktor Faustus, fazendo-o funcionar como intertexto e modificador: “L’interêt du film de Visconti vient donc du fait qu’il constitue une relecture de Mann jeune à la lumière de Mann vieillissant, passée au filtre d’un regard cinématographique dont l’évolution semble inverse de celle de l’écrivain” [Ibidem, p. 174].
[…] Por via desta autonomia detectada e inserida no conceito global de transescrita, que unifica o referido colóquio “La transécriture pour une théorie de l’adaptation”, deveríamos talvez relativizar o uso, por vezes abusivo que fazemos da noção de intertextualidade, a qual pressupõe ainda um maior grau de parentesco entre objectos que caminham para a separação, mesmo quando insistem numa convergência inicial ou medial.